_MEMÓRIAS DE UMA CAIPIRA_

_MEMÓRIAS DE UMA CAIPIRA_

Este espaço virtual, criado em 2008, é fruto de minhas andanças e incursões pelo ofício etnográfico na Ilha de Cananéia, no Vale do Ribeira, Estado de São Paulo, onde pretendo deixar minhas impressões como caminhante, ou tal como diria Helena P. Blavatsky, Lanu.

E no cais se fez história...

E no cais se fez história...
Das memórias imemoráveis dos moradores mais antigos, perpassando por suas bocas seus "causos", saberes e sabores desta ilha, esta caipira mantêm os olhos abertos e a mente relativizadora para fazer-se instrumento de captura dessas histórias de degredados, índias, sereias e sacis que cruzam esta Mata Atlântica e este estuário. Seja bem-vindo a este espaço onde os mitos e lendas que compõem a oralidade caiçara criam e recriam com seus "causos" que se espalharam para além mar. Prepare-se para encontrar tesouros perdidos, passagens secretas, pois a viagem ao imaginário do ilhéu acabou de começar... _Créditos Fotográficos Bianca Lanu_

2 de março de 2010

A educação como base para a manutenção da cultura caiçara

André Murtinho Ribeiro Chaves[1]




“Um país não vive quando a juventude só tem acesso a valores de outros povos”.

Ariano Suassuna



O universo cultural


Quando moleque – até uns 16 anos – eu era um destes torcedores fanáticos por futebol, que sabiam toda a escalação do time e lembrava sem muito esforço de todos os gols, datas e histórias dos ídolos. Com exceção de Argentina e Uruguai, que têm forte influência européia, sempre que um time sul-americano jogava com a nossa seleção eram esperadas “goleadas históricas” – 5, 6, 7... a 0, 1... Quando a Bolívia, por exemplo, arriscava empatar, os locutores, comentaristas, repórteres de campo reagiam com um excessivo preconceito. “Desde quando futebol é um esporte na Bolívia”, diziam. ”Não podemos levar um gol deste timinho”. Nos dias que antecediam as partidas, havia um esforço tremendo em desqualificar o futebol dos “inimigos”. Um dia a Bolívia ganhou. Tragédia nacional... Este era o meu mundo e foi a partir daí que eu conhecia o restante da América do Sul.

Esta postura preconceituosa da mídia contra povos essencialmente originários se estendia em relação à economia e cultura: segundo se divulgava, não havia riquezas, nem coisas interessantes nestes países pobres periféricos. Quando falamos que um produto é do Paraguai, ainda é sinônimo de má qualidade. A imagem que se faz da Colômbia é de um lugar onde só existem traficantes e marginais, tudo gente perigosa, como narrado em filmes norte-americanos. A opinião, portanto, que eu tinha e que muita gente tem da América do Sul não europeizada é aquela que a televisão passa através do circo de suas informações. Parece verdade. Mas será que os povos originários, indígenas, eram por natureza pior do que os invasores europeus? Era uma questão genética ou algo historicamente construído? Por que negros e indígenas seriam piores do que os brancos?

Um dia – aos 24 anos – eu consegui chegar na fronteira com a Bolívia. Ainda era Brasil – Corumbá, no Mato Grosso do Sul – e foi por algumas horas, mas minha opinião começou a mudar. Descobri que os bolivianos era um povo, diferente sim, mas irmão. As mulheres se vestiam com trajes andinos, ainda que ao pé da “sierra”. Sentia que mesmo no meu país, eu respirava uma outra cultura, a rica cultura indígena sul-americana. Isto me fez bem. A partir daí comecei a refletir sobre a minha formação cultural... Voltei no tempo... Nasci em Aracaju, capital sergipana, próximo ao baixo vale do São Francisco. Sempre viajei para o Rio de Janeiro para visitar a minha avó e tias. Aos 17 anos fui estudar numa universidade em Campinas. E mesmo com esta mobilidade precoce, o meu universo cultural era essencialmente televisivo, com valores externos insistentemente martelados na minha cabeça. Ter cultura era, para mim, saber a cultura dos outros povos, principalmente europeus. Isto era sinônimo de erudição. Assim, eu caminhava para ser ao mesmo tempo erudito e ignorante.

Foi só após algum tempo, a partir dos 20 anos, conhecendo novos lugares e retornando periodicamente à minha terra é que eu (re)descobri a cultura sergipana: São Cristóvão, Itabaiana, Laranjeiras, Japaratuba, Nossa Senhora da Glória, Canindé do São Francisco, tantos lugares bonitos e ricos, ficaram 16 anos ali, do meu lado, e eu nunca havia percebido os ritmos, seus cantos, sua história: bacarmateiros, bumba meu boi, dança do parafuso, maracatu. Um novo mundo se abriu. No meio burguês em que cresci, pouco se valorizava esta cultura local. Hoje estou investigando a minha história. A terra da minha avó paterna – Porto Real do Colégio, lado alagoano do Rio São Francisco – era um território dos índios Kariri-Xocó. Também sei que por parte de mãe, tenho uma ascendência Bororo, do Mato Grosso. Além obviamente de genes europeus, que se mesclaram no Pará, e genes africanos, misturados em Alagoas e Sergipe. Toda esta diversidade étnica culminou num encontro nas praias cariocas, do qual o fruto foi produzido em solo sergipano.


O encontro de culturas


Conto um pouco do pouco que conheço de minha história para me fazer entender. Sei que muitos jovens que crescem numa rica cultura, como a caiçara, não têm a devida compreensão da importância deste reconhecimento. A paisagem, o jeito de falar, as profissões e vocações, a culinária, as danças... Como disse o Padre João Trinta em entrevista realizada para este projeto: até a década de 1960, Cananéia era uma vila com uma cultura produzida pelo isolamento e que com a chegada de órgãos públicos estaduais e principalmente da televisão, houve um rompimento de valores, que causou uma forte instabilidade. O encontro de diferentes culturas pode ser um rico momento para produzir uma nova cultura, mas acredito que estupro cultural é o melhor termo para definir o que tenho ouvido sobre esta época em Cananéia. Havia uma grande pressão cultural externa, de pessoas e de mídia, para que houvesse uma mudança de comportamento, visando um “jeito civilizado”, para ser mais claro: um comportamento presente na zona sul carioca (europeizado) e repetido ininterruptamente nos últimos 50 anos, através da TV e de diversos outros meios de invasão cultural. Caiçara, para quem chegava neste novo mundo, era sinônimo de preguiçoso. Isto gerou um descompasso violento entre a educação dos filhos e a formação dos pais. Somado às políticas de governo, deficiente nos diversos níveis, Cananéia vive hoje um momento cultural difícil. O jovem caiçara está meio perdido no meio de tanta informação, mas sem muita oportunidade. O que fazer com tanto ruído externo?


A situação do jovem em Cananéia


Minha experiência nestes 2 anos e meio de magistério em solo caiçara, me permite ver que a juventude cananeense é extremamente criativa e muito inteligente, como disse o Padre João Trinta. Mas, com diversas carências básicas, que têm influenciado diretamente na sua vida e nas suas opções, impedindo o seu desenvolvimento pessoal e frustrando os seus sonhos. Podemos resumir estas carências em duas: a) carência econômica e b) carência afetiva, ambas resultado de uma falência estrutural da sociedade. A primeira diz respeito à falta de políticas de desenvolvimento, sejam para emprego e geração de renda, sejam para cultura e educação. A opção econômica é diretamente responsável pela situação educacional. Educação aqui, em termos mais amplos, se refere à formação de vida da pessoa, escolar ou não. A educação por sua vez tem um forte componente afetivo.

A estrutura da escola brasileira como um todo e mais especificamente da escola paulista, é deficitária e atrasada. Mesmo com os recentes avanços da inclusão educacional, esta o foi essencialmente quantitativa, sem prezar pela qualidade do ensino e pelos novos métodos transformadores baseados na práxis pedagógica e na construção do próprio conhecimento. Como educar ou mesmo instruir um adolescente numa sala com 45 alunos? Como inovar pedagogicamente se não temos acesso facilitado a este conhecimento? Como sugerir uma nova postura na alimentação (e na vida) se o próprio governo manda comida enlatada e embutidos para os alunos? Por mais que haja um esforço dos professores, a escola não tem capacidade física e psicológica de dar conta de tantos problemas familiares. A carência afetiva das crianças e jovens caiçaras está atingindo índices alarmantes.

Muito em razão da (des)estrutura econômica, poucos pais têm tempo disponível para oferecer o aconchego necessário para o desenvolvimento cognitivo da criança e do adolescente. A necessidade de permanecer fora de casa, a exploração pelo trabalho e suas conseqüências, são nefastas para a família. Além disso, muitas crianças são frutos de relações indesejadas, o que muitas vezes causam rejeições do pai, da mãe, ou do restante da família. O crescimento do aluno no meio de abandono é um dos motivos que contribuem para a dor de cabeça de muitos educadores. Como diversos relatos mostram, além deste abandono, a convivência com o alcoolismo e a violência familiar – muitas vezes sexual – também contribui para um desenvolvimento comprometido (no mau sentido) do jovem.

Mas por que esta falta de planejamento familiar? Por que a gravidez na adolescência tem altos índices aqui no Vale do Ribeira e especificamente em Cananéia? Por que o alto índice de alcoolismo? Por que o repentino crescimento do tráfico? Será que estas variáveis estão relacionadas? É preciso investigar mais a fundo e de forma científica estas relações indesejadas, mas posso arriscar algumas hipóteses. Uma delas é o desemprego e a falta de oportunidades econômicas e culturais, já colocada acima. Talvez só isto não baste. Outra hipótese complementar: a pressão da “sociedade do consumo”, embarcada pela grande mídia televisada e escrita, colocando na cabeça do jovem a sensação de incapacidade de construção do seu próprio destino. O modelo individualista de sucesso colocado como o único possível, pode levar à frustração precoce e continuada do jovem, o que por sua vez pode levar à tristeza e depressão. Como sabemos, a adolescência é um momento de formação e instabilidade entre a vida infantil e a vida adulta. É delicado e caótico: qualquer alteração nesta fase pode alterar toda uma vida, sem previsão. Talvez seja por isto que muitas mães e professores se surpreendam que mesmo irmãos – até gêmeos – podem ter comportamentos e escolhas tão diferentes. Uma frase, um olhar... é o suficiente.

Nesta situação de extrema incerteza é muito fácil descambar pelo lado do individualismo, o que gera cada vez mais frustração. Afinal quando achamos que o sucesso e o fracasso é responsabilidade exclusivamente nossa, aumenta a nossa sensação de potência ou de impotência, conforme o lado. Como o sucesso – dizem os seus defensores – é para poucos, esta seleção natural resulta numa grande massa descartada e frustrada. O “consolo” pode estar no álcool e outras drogas. A busca rápida por um casamento pode ser um tipo de venda informal da vida, o que acontece com muitas adolescentes. Esta busca da felicidade, em último caso, pode resultar na prostituição.


O acesso à informação


Em todo este processo sobra pouco tempo e interesse para o jovem conhecer a fundo a sua história, o seu ambiente e mesmo a vocação de sua economia. Qualquer iniciativa que preze por esta busca da identidade sociocultural traz novos elementos para a resistência de uma vida esmagada pelo gigante do capital. Novos interesses em velhos territórios, formação de novos quadros jovens, busca de novas oportunidades acabam gerando esperança e reconhecimento no jovem caiçara. Nos últimos anos tem havido algumas tentativas neste sentido. Projetos de valorização ambiental (como o Cananéia Tem Parque), cultural (Resgatando o Fandango Caiçara) e econômico (como os de Turismo Rural e Agricultura Ecológica) têm prezado pelo desenvolvimento através do reconhecimento do modo de ser caiçara. Outros projetos educativos de iniciativa governamental – como Educação de Chico Mendes, Ponto de Cultura “Caiçaras”, Sala Verde, Coletivo Jovem, Coletivos Educadores e mais recentemente este – Saberes Caiçaras, mesclados com impulsos locais, têm levado alguns professores e alunos das escolas públicas de Cananéia a conhecerem de perto a história e realidade socioambiental do município.

Vivenciar este conhecimento local, indo à campo, agindo no seu resgate e manutenção, é uma maneira de educar esta molecada. Educar no sentido freiriano, de transformar a sua vida para melhor. Aumentar a auto-estima e o conhecimento de sua própria história é um requisito para um desenvolvimento legítimo. Se o jovem caiçara se sente capaz de se posicionar e de produzir (escrevendo, falando, tocando, cantando), é necessário dar capacitação técnica e ferramentas para que ele atinja seus objetivos. Com estas técnicas em mãos num meio receptivo, não é tão difícil escrever um boletim, um zine ou um jornalzinho. Uma rádio escola ou uma rádio livre (com transmissor simples) também não é tarefa complicada para jovens de uma cultura tecnológica (sim) que lida diariamente com a agricultura e a pesca.

Padre João Trinta coloca com bastante propriedade que a profissão de pescador é a mais ampla em conhecimentos, incorporando informações e práticas de diversas profissões: meteorologia, física, navegação, mecânica, biologia, oceanografia e outras áreas do conhecimento. Para quem convive com isto, um pouco mais de apoio técnico na área de comunicação é o suficiente para montar um periódico ou uma rádio. Não existe maneira mais legítima de educar do que este processo de produção de um novo conhecimento, vivenciado, com jovens educando jovens, na sua linguagem. A capacidade de ser dono do nosso próprio destino é uma qualidade a ser alcançada por todo indivíduo e qualquer comunidade, em qualquer idade.

É preciso ficar claro que quando se fala em resgate de sua cultura, nada impede que conheçamos outras culturas. Aliás, isto é preciso. Poucas pessoas compreendem que um índio da etnia M’bya Guarani não perde a sua identidade cultural se visita a cidade ou se adquire certos hábitos do ambiente visitado. Há um profundo preconceito em algumas posturas. Por que se critica tanto o uso de telefones celulares pelos indígenas? Nós não usamos os seus colares? O mesmo ocorre quando um negro alcança um posto de visibilidade na sociedade. Mas ele não era escravo, pobre? Como pode? A cultura não se perde por trocas, se perde por opressão, quando um grupo se coloca acima de outro. Segundo o professor da aldeia Morros dos Cavalos, em Palhoça, a uns 15 quilômetros de Florianópolis, Marco Karaí Djekupé, “a única coisa que uma comunidade Guarani não pode nunca abrir mão é da sua Casa de Reza. Não importa onde ela esteja. Temos o exemplo de uma aldeia que está na periferia de São Paulo, no meio dos não-índios. Mas essa aldeia tem sua Casa de Reza e lá as pessoas vão escutar as palavras antigas, para que a nossa cultura nunca morra”.

Assim, todo e qualquer preconceito social é mais uma tentativa de manutenção de privilégios de grupos historicamente dominantes, a custo da violência física ou moral contra povos oprimidos. O extermínio dos ancestrais guaranis ainda é incompreensível, ainda como não é possível para os seus descendentes entender a expulsão dos mesmos de terras a que historicamente lhes pertence. Para estes povos – assim como eram para os carijós – não existem fronteiras, existe um território: Ywy rupa. Se não existem fronteiras, para que guerras?


A grande mídia


Leio e ouço recentes episódios de ataques ferrenhos da grande imprensa aos povos e à cultura tradicional e penso no desserviço prestado por estes orgãos que deveriam informar criticamente o cidadão. Uma reportagem da revista Veja, de maneira preconceituosa, discriminatória e imoral se refere o povo M’bya Guarani (do qual os carijós eram um ramo) como invasor, estrangeiro, “Made in Paraguai”, como diz o título do artigo. Em matérias veiculadas recentemente e diariamente pelos Jornais da Globo, como "Crime no quilombo? Suspeitas de fraude e extração de madeira de Mata Atlântica" , também se denigre pessoas e localidades declaradas como remanescentes de quilombos, questionando a veracidade dos pareceres que tornam estas áreas de extrema importância histórica e cultural. Em ambos os casos há um desrespeito profundo por estas etnias, que se estende aos profissionais reconhecidamente idôneos de instituições reconhecidas, como a Fundação Palmares.

Coincidência (?) ou não (!), após esta reportagem televisada do Jornal Nacional, aparece uma pesquisa sobre a miscigenação brasileira – amplamente divulgada pelo jornal Estado de São Paulo, onde negros famosos fazem parte do público analisado. Entre eles, Neguinho da Beija-Flor (puxador de samba) e Daiane dos Santos (ginasta) descobrem que mais de 60% do seus genes têm ancestralidade européia. Já Sandra de Sá e Seu Jorge (cantores) têm uma ancestralidade predominantemente negra, cerca de 90%. Quanto aos métodos utilizados e à veracidade das informações ainda não tive oportunidade de analisar. Mas quanto à postura dos editores do Jornal Nacional, posso afirmar que houve manipulação completa, pois só foi divulgado por esta emissora os negros de ancestralidade predominantemente européia, em tom festivo. Sandra de Sá e Seu Jorge não apareceram na reportagem.

Por que relato estes fatos? A grande maioria da população assiste o Jornal Nacional como se fosse o porta-voz da verdade, guardião da informação. Já a revista Veja é tida por boa parte dos formadores de opinião como uma referência. Os jovens e os pais destes jovens estão sujeitos diariamente a este bombardeio. Se não há um conhecimento da história e da cultura de sua região, de forma a permitir que estes espectadores tenham uma avaliação crítica da informação veiculada por estas mídias, o cidadão fica sujeito ao que estas empresas querem veicular.


Comentários Finais


Uma das poucas formas de enfrentar esta tendência de extermínio da cultura caiçara é contribuindo para que os jovens se organizem, descubram e produzam. Neste processo, pode se descobrir – ao contrário do que conta a história oficial – que a cultura caiçara é o encontro da cultura européia (portuguesa) com a indígena, com pitadas africanas, espanholas e alemãs. Quem não gostar de trabalhar por trabalhar, não é ser preguiçoso, e sim sábio. Também se descobre que, apesar da truculência dos portugueses que chegaram, temos que aceitar a sua cultura. Assim, como tive que aceitar por muito tempo torcer por um time de futebol, cujo nome representava toda esta violência: Vasco da Gama. Mas que me traz alguma identidade: entre a minha infância futebolística e a cruz de malta, existe o símbolo de Cananéia.


* Texto publicado em Saberes Caiçaras: a cultura caiçara na história de Cananéia, Cleber R. Chiquinho (Org.), 2007, Ed. Páginas & Letras.


[1] Mestre em Ecologia, docente da Escola Estadual Profa. Yolanda Araújo Silva Paiva e membro do Coletivo Educador de Cananéia.

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