_MEMÓRIAS DE UMA CAIPIRA_

_MEMÓRIAS DE UMA CAIPIRA_

Este espaço virtual, criado em 2008, é fruto de minhas andanças e incursões pelo ofício etnográfico na Ilha de Cananéia, no Vale do Ribeira, Estado de São Paulo, onde pretendo deixar minhas impressões como caminhante, ou tal como diria Helena P. Blavatsky, Lanu.

E no cais se fez história...

E no cais se fez história...
Das memórias imemoráveis dos moradores mais antigos, perpassando por suas bocas seus "causos", saberes e sabores desta ilha, esta caipira mantêm os olhos abertos e a mente relativizadora para fazer-se instrumento de captura dessas histórias de degredados, índias, sereias e sacis que cruzam esta Mata Atlântica e este estuário. Seja bem-vindo a este espaço onde os mitos e lendas que compõem a oralidade caiçara criam e recriam com seus "causos" que se espalharam para além mar. Prepare-se para encontrar tesouros perdidos, passagens secretas, pois a viagem ao imaginário do ilhéu acabou de começar... _Créditos Fotográficos Bianca Lanu_

9 de fevereiro de 2010

Uma história do povo e das águas


Por André Ribeiro Murtinho Chaves & Mayra Jankowsky *


Reza a lenda, certa noite de lua cheia, um pescador no rio Ribeira, próximo à imensidão do mar, escutou um barulho estranho, mas que não era o peixe cantando... Sentado em sua canoa prestou atenção e para sua surpresa eram as águas falando. E era uma história muito antiga:


“Muitas águas se passaram nesse rio: são nossos ancestrais aos quais somos muito ligados, desde lá de cima, onde nascemos, até aqui onde nos misturamos com nossos salgados irmãos. Mas um rio de tamanha importância e que damos vida, temos por obrigação conhecer sua história. Porque sua historia não é sozinha, ela conta muitas histórias. Desde que o rio existe, nós, as águas, vimos muitos tipos de peixes, de plantas, de bichos e, recentemente, até de gente.”


O pescador prestou atenção, pois nessa hora, a história a ser contada era dos povos que viveram ao longo do rio:


“Já vimos gente de muitos tipos e durante muitos séculos essa gente toda foi mudando, mas viviam sempre junto do rio, pescando e plantando. Diferente de agora. Agora ainda tem gente que mora junto do rio, e como antes, caça, planta e pesca, mas tem quem faz diferente. O povo mais antigo, planta mandioca, banana, milho, mexerica, feijão, arroz, cana e outras coisas. Ainda pescam e caçam. Cresceram junto do rio e da mata. Até começaram a plantar diferente, juntando a floresta com a comida deles, que hoje eles chamam de agrofloresta.


Já quem mora distante (e não sofrerá as conseqüências), vive de outras coisas, mas ainda vem usar o rio. De início, só usavam a água em umas plantações muito estranhas, plantações de uma coisa só que muitas vezes não são nem para eles comerem. É pinus, é eucalipto, é banana... Para plantar muito de uma coisa só, eles abrem estradas e chegam até a beira do rio. Com isso a água da chuva que devia ir para a terra e depois encontrar com as águas do rio acaba indo muito rápido para o rio. Só que nessa época, o rio já tem bastante água por causa da chuva. Mas em tempo que não chove são as águas da terra que deveriam passar para o rio, mas a terra já não tem mais água e o rio vai secando... Então, esse povo que se criou junto com rio vai se perdendo...


Ainda agora, nos últimos vinte anos, pensaram em fazer uma outra coisa diferente, parar as águas do rio para tirar força das águas que passam descendo. E nem é para o povo deste rio... esta energia vai para bem longe! É a barragem da Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto. Vai ter água - muitos irmãos nossos - que ficará presa por muito tempo, no meio da podridão, e só uma parte vai poder continuar livre, sendo rio. E todo mundo vai sentir falta dessa água livre e pura: as plantas, os animais e o povo que vive do rio. As pessoas, que diferente dos outros animais e plantas, sabem falar, não são bobos nem nada, há alguns anos gritam que não querem essa tal hidrelétrica. Gritam, usando a ciência dos homens, que não vão mais ter roça, que não vão mais ter peixe, e pior: que toda sua história e seu saber vão se perder e, assim como as águas limpas, vão ficar parados, enfraquecer e talvez sumir.


É o que está acontecendo com os peixes e os povos que vivem lá no mangue, um povo caboclo chamado caiçara, que planta e que pesca, do morro até a praia. Este povo vive da pesca da manjuba, um peixe pequeno e saboroso, pescado há muitos e muitos anos e que sustenta milhares de caiçaras. Este sustento pode ter fim, já que nós, as águas do Ribeira, podemos chegar cada vez menos para este peixe e para o povo. E este povo que sempre cuidou para este sustento não acabar... E agora vem os homens ricos deste país e querem acabar com esta história de vida, estancar nossos irmãos e trazer a morte.


O mais estranho é que outros homens, desse mesmo povo, que nem vivem aqui, vão decidir o futuro do rio. Dá medo, porque já escutamos as águas de outros rios, contando sua triste história, de muitas barragens e pouca água, de muita energia e pouca comida, de muita promessa e pouca oportunidade, até o povo do rio ir embora.


Na cultura destes homens (que eu não entendo), riqueza é juntar todo o dinheiro do mundo na mão de poucas pessoas. Eles dizem que assim, vão melhorar tudo, mas vejo que o caiçara (que cuida melhor das águas) já sabe o que querem estes homens: eles querem mandar na água e na terra, tirar tudo o que puderem e vender para fora, pros estrangeiros. Para isto, já estão querendo fazer mais um porto lá em Piaçaguera, também em cima de nossa terra e do sofrido povo guarani... E isto também não é lenda, como a voz dessas águas. Isto é uma outra e triste história...”



* André M. R. Chaves é Biólogo, Mestre em Ecologia e Educador da Rede Pública Estadual de Ensino, em Cananéia/SP; Mayra J. também é Bióloga e Mestre em Etnoconhecimento.


Foto de Fernando Oliveira.


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